A dificuldade de acessar informações dos sistemas informatizados dos Tribunais de Justiça (TJs) e Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs) prejudica o monitoramento dos processos por violência racial no País, tanto por racismo como por injúria racial. A constatação faz parte de estudo publicado na última edição do Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil, produzido pelo Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (Laeser) da UFRJ.
“As relações raciais são extremamente periféricas para a estrutura estatal e não seria diferente para a Justiça, que certamente é o poder mais hermético que nós temos”, afirma Cleber Julião, professor de direito da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e autor da pesquisa "Resultados de Julgamento dos Casos de Racismo nos Tribunais de Justiça e nos Tribunais Regionais do Trabalho”.
"Virtualmente impossível"
A análise indica que há tribunais de Justiça no País em que a pesquisa de processos é "virtualmente impossível" pela internet e que "chama a atenção a dificuldade, no limiar da impossibilidade, de se verificarem os resultados acerca de processos de crime de racismo nos Tribunais Federais e mesmo nos Tribunais Superiores”.
A dificuldade de acesso está associada à falta de critérios claros sobre a divulgação dos processos. Nem todos são colocados à disposição do público, segundo Julião. “O sistema de alimentação dos processos é seletivo. Há uma escolha por parte dos juízes e não sabemos ainda os critérios.” A coleta de dados teve de ser individualizada, de acordo com o sistema de cada tribunal, pois não há padronização.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) vem trabalhando na implementação do Processo Judicial Eletrônico (PJE) para aprimorar o sistema de informação processual. O sistema deve ser instalado em todos os Tribunais de Justiça do País, mas não há prazo para que isto aconteça.
O PJE vai permitir uma padronização na obtenção de informação e a busca de processos por artigo, não por varas - o que atualmente complica os trabalhos de pesquisa. Os casos de violência racial, por exemplo, pode ser distribuído para diferentes varas, como a criminal ou a do trabalho.
"Principalmente varas penais da Justiça comum estão ainda em fase de processos físicos", afirma o ouvidor do CNJ Gilberto Valente Martins, coordenador do grupo que regulamenta o acesso à informação.Martins explica que dados de primeira instância muitas vezes não são divulgados porque a jurisprudência se baseia nas decisões de segunda instância.
Processos
O estudo se baseia em buscas nos portais dos tribunais a partir de seis termos (racismo, preconceito, injúria, discriminação racial, preconceito racial e injúria racial) e contabiliza perdedores e vencedores de processos concluídos nos biênios 2005-2006 e 2007-2008. Há também comparações das decisões de segunda e de primeira instância.
Em 2007 e 2008, dos 148 casos apurados em todos o País, 99 tiveram ganho de causa para o réu e 44 para a vítima em segunda instância. Cinco deles não foram apreciados. Em primeira instância, 82 casos foram considerados improcedentes - o estudo não avalia os motivos da improcedência porque na maioria dos portais estas decisões não estão disponíveis.
Nos Tribunais Regionais do Trabalho, foram julgadas 41 ações de violência racial entre 2005 e 2008, sendo 17 consideradas procedentes e 16 improcedentes em primeira instância. Em segunda instância, o réu ganhou 24 processos e a vítima, 15. Outros dois não foram apreciados.
A maior parte dos processos é do Rio Grande do Sul. Ao todo, foram 44, ou 29,7% do total. A liderança é atribuída não por um traço cultural racista, mas por conta da facilidade de acesso à informação.
“O tribunal gaúcho conseguiu conceber um modelo de publicização de informação de maneira mais republicana, preocupada em dar acesso à informação. Continua na vanguarda com relação aos demais”, diz Julião. O pesquisador ressalta, no entanto, que a discrepância na obtenção de dados diminuiu entre 2008 e 2010, quando foram realizados os dois levantamentos.
Foi justamente em território gaúcho que aconteceu um caso recente de violência racial. O juiz Márcio Chagas da Silva foi chamado de "macaco" e ouviu outros insultos de cunho racista durante partida do Campeonato Gaúcho. Ele ainda encontrou bananas em cima do carro, que tinha sinais de depredação.
Outros casos de racismo no futebol foram registrados, como as agressões aos jogadores Tinga, do Cruzeiro, em uma partida no Peru, e Arouca, do Santos, durante um jogo em Mogi Mirim, no interior de São Paulo. O caso de uma australiana que se recusou a ser atendida por uma manicure negra no Distrito Federal também virou notícia em todo o País. Ela foi presa e liberada no dia seguinte.
“Pessoas de bem”
Segundo Julião, dentro do próprio sistema judiciário existe resistência em dedicar esforços a casos de violência racial porque costuma envolver acusados sem antecedentes criminais.
“Geralmente pessoas que cometem atos de racismo são como eu, como você, pessoas comuns, as ditas “cidadãs de bem”, afirma o pesquisador. “Já ouvi um juiz falar ‘não quero analisar processo de ‘pessoa de bem’. Mas a vítima também é uma pessoa tão de bem quanto o outro, também trabalha, estuda, só que nem sempre o tratamento para esse tipo de demanda é dado de forma igual".
Racismo e injúria racial
O direito penal brasileiro estabelece dois tipos de violência racial: o racismo e a injúria.
O racismo é crime inafiançável e imprescritível, previsto no artigo 5º, inciso 42 da Constituição Federal, e regulamentado pela lei 7.716/89, a chamada lei Caó, em homenagem ao autor da proposta, o deputado Carlos Alberto de Oliveira. Quem impede o acesso de pessoas habilitadas para cargos no serviço público ou recusa-se a contratar trabalhadores em empresas privadas por discriminação está sujeito a pena de dois a cinco anos de reclusão.
A pena é de três a cinco anos a quem impede que crianças se matriculem em escolas e de um a três anos a quem recusa o acesso a estabelecimentos comerciais, que cidadãos negros entrem em restaurantes, bares ou edifícios públicos ou utilizem transporte público. Funcionários públicos que cometem racismo podem perder o cargo. Trabalhadores de empresas privadas estão sujeitos a suspensão de até três meses. A incitação à discriminação e ao preconceito também é passivel de punição.
A injúria racial, assim como a calúnia e a difamação, é um crime contra a honra. Trata-se de injúria qualificada, que abrange elementos de raça, cor e também de etnia, religião ou origem, de acordo com a lei 9.459/97. A pena é de um a três anos e multa. O crime prescreve em seis meses.
A reportagem do IG consultou o Ministério da Justiça, o Conselho Nacional do Ministério Público (CMNP), o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) em busca de dados a respeito de denúncias, processos ou casos de prisão que focassem a questão racial. Nenhum, porém, contabiliza dados com este recorte.
A Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) controla o número de denúncias feitas à ouvidoria do órgão. Foram 656 em 2011. O número caiu para 413 em 2012 e se manteve praticamente estável no ano passado, em 425. A secretaria informou que está em processo de conclusão a licitação de um disque denúncias de racismo (138), que deve ser implantado ainda este ano. Por enquanto, as denúncias podem ser feitas pelo e-mail ouvidoria@seppir.gov.br ou pelo telefone (61) 2025-7000.